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Chegado ao inferno, se me fosse dado a escolher entre um dos seguintes tormentos: voltar à Terra na pele de um português “médio” ou na de um americano “médio”, preferia mil vezes o segundo: tem mais guito, não usa bigode, não urina em locais públicos, nem costuma cuspir para o chão à passagem de outros transeuntes.
Pior do que me prestar a essas tristes figuras, seria o facto de não haver meio de o evitar. Aí é que reside o verdadeiro tormento. Passo a explicar: acontece que a essas criaturas parece estar vedada qualquer hipótese de regeneração. Para fazer alguma luz sobre isto, tenho forçosamente que introduzir aqui (mas sem me atrever a explaná-lo) um conceito que tem gerado acesas discussões entre filósofos e não só: o determinismo, a (pré-)determinação. Pelo padrão repetitivo dos seus comportamentos e hábitos, boçais acrescentaria, sou levado a crer que falta às criaturas “médias” (que admito não passarem de “tipos” no sentido sociológico) o palavrão no quadrante oposto que é o livre-arbítrio. Não há volta a dar, por mais que se tente reeducá-los, tornam à estaca zero e aos maus hábitos. Estão como que pré-determinadas nesse sentido.
Também deve haver uma componente fisiológica em todo esse fenómeno. O nível de endorfinas no cérebro deve disparar quando por exemplo se urina seja contra uma árvore ou um carro e se sacode a genitália ao ar livre. Não desdenhemos das virtudes de certas aragens.
A componente genética também não deve ser de se menosprezar: heranças de antepassados que sempre fizeram tudo às claras, enquadrados na beleza e tranquilidade da natureza. Um certo desejo de retorno às origens, um desejo quase naturista de regresso aos elementos deve correr nos genes do homem “médio”. Isto remete-me para uma das suas maiores aspirações: a de ser naturista. Sem desprimor para os naturistas, que estando perfeitamente enquadrados com a natureza, são gente geralmente civilizada e com bons modos.Porém, para infelicidade do homem mezzo, o seu físico regra geral não abona em seu favor. Arredado das lides naturistas por motivos estéticos, o “homem médio” está portanto encarcerado num impasse aparentemente insolúvel: pré-determinado a não ter força nem vontade para moldar o corpinho, mas continuando a sentir em si um forte apelo naturista. Daí que tenha de se contentar com as proezas que todos lhes reconhecemos quando com eles nos cruzamos na rua. Só a título de exemplo: quando o homem médio cospe para o chão, fá-lo a modos que inconsciente. É então nessas alturas que passa a ser recompensado, claro que tendo plena consciência disso, com um dos mais vívidos sentimentos de liberdade. Mesmo os transeuntes que ficam nauseados à vista de tal excreção, geralmente não se atrevem a recriminar a “criatura média”. Porque ao transeunte nauseado, ditam-lhe os genes dos antepassados que não se recrimina uma tal manifestação de liberdade, não se estraga assim o prazer alheio. Quanto ao naturista, este não sente sequer a tentação de cuspir para o chão, porque satisfaz plenamente o seu desejo de regresso às origens nas horas em que se despoja das vestes na praia. Uma vez que isso do corpinho ao léu na praia está vedado ao homo mezzo, ele compensa-o também com um mínimo de superfície corporal ao léu: no momento de escorrer as águas num qualquer canto. O prazer é inqualificável, obviamente só superado pela cópula ao ar livre. Uma prerrogativa, porém, raramente ao alcance do homo mezzo. Daí que tenha de se desenrascar por outros meios.
Estranhamente, também o futebolista entra na categoria paradoxal do “homem médio”. Praticando uma actividade ao ar livre, contactando a cada passo com a relva, comendo-a até, caso o desenrolar do jogo assim o exija, não se percebe muito bem a proficiência com que cospe para a relva. Está certo que a produção de saliva é comum a todo o ser humano, mas há quem engula, bolas! A salivação e as suas escorrências pelos beiços, também o efeito pavloviano o comprova para determinados estímulos. Ora, correr atrás da bola, esforçar-se por tê-la na ponta dos pés, é o supremo estímulo para o futebolista. Daí a salivação abundante. Os vigores do desporto-rei implicam além disso uma elevação dos níveis de testosterona. Daí advêm características como a combatividade, a agressividade e a competitividade. A afirmação de força e a marcação do território são provavelmente asseguradas pelas profícuas cuspidelas.
E o que é que isto tem a ver com os Simpsons? Pouco, ou muito pouco. Talvez a ideia preconceituosa que um grande número de europeus tem do “americano médio”, personificada em todo o seu esplendor (talvez não tão calvo) na persona (a meu ver: muy grata) de Homer Simpson.
Depois disto vão-me dizer: "Eh pá! Preconceitos tens tu! Olha só a ideia que tu fazes do português médio..." E será que existe isso do homem, do português ou do americano médio? . P.S. . Durante umas semanas, guardei este texto sem pés nem cabeça como rascunho, enquanto me decidia se devia postá-lo ou não. Pá! Perdi algum tempo a escrevê-lo, e esse é o único motivo porque aparece aqui.
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