sexta-feira, setembro 29, 2006

Do spot anti-TV ao sacerdote-conselheiro matrimonial

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.A TV pode ser um escape (para outra dimensão... geralmente mais imbecilóide), um entretém (com qualidade só em muito raras ocasiões), quando muito um paliativo ilusório para a solidão, mas nunca um substituto à altura do que vale a pena ser vivido. A mão que ela nos parece estender nas horas solitárias é interesseira: a TV não é amiga de ninguém, finge que nos adora na justa medida em que lhe podemos ser úteis. E ser-se útil para a TV, como para qualquer outra empresa, resume-se ao nosso poder de compra, à nossa condição de consumidor em potência e ao automatismo com que as operadoras de marketing e de SMS esperam que reajamos aos seus anúncios. Se estiver ao seu alcance, a TV, com a sua verve incontrolável e a sua vontade dominadora, acabará por escravizar cada um dos nossos neurónios e formatá-los para uma máxima resposta aos seus cada vez mais sugestivos e elaborados spot’s publicitários. Além disso é uma mão que, se consentirmos, não nos deixa crescer, que lentamente cria amarras e nos afasta do exterior, nos afasta do contacto com o outro..




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Mesmo nesta suposta era de personificação - que vai de caso real em caso real (que os desenterra não se sabe bem de onde, nem com que fins, para depois voltar a enterrá-los nas valas comuns do esquecimento) -, os laços de proximidade que pretende criar são, na maior parte dos casos, meramente artificiais. A lágrima fácil para com os dramas alheios - sem duvidar da sua sinceridade no momento – não traz, na maior parte dos casos, benefícios (em termos de ajudas concretas) para as pessoas visadas. As operadoras de TV estão perfeitamente conscientes que a exploração desses casos ditos da vida, desperta a curiosidade e a atenção das pessoas, garantindo assim um filão quase inesgotável de audiências. Sabem que há nisso uma forma de catarse pessoal, para lavarmos a própria alma dos nossos problemas e pensar: “Puxa! Olhem só para estes... E eu ainda me queixo!”
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Voltando ao tema da mão alienante. Todos nós já ouvimos histórias de velhinhas não saberem muito bem onde param as fronteiras entre a realidade e a ficção. (Se bem que nessas idades não é preciso ir para o capítulo da TV para desenterrar casos de semelhante desnorte). Pessoalmente conheço um caso, em que a dita pessoa julgava que uma cena de castigos corporais numa telenovela era mesmo real. Mesmo com as nossas explicações, nem por isso ficou convencida de que era mera ficção. Prefiro não falar do impacto sobre mentes sugestionáveis, como o das crianças. Não tenho conhecimentos para tal. Nem para isso nem para o que já dissse até agora, mas pronto... Tenho que postar alguma coisa, não é? Senão mais dia, menos dia sujeito-me à vergonha pública*1 de perder as divisas da Irmandade do Peluche.
Voltando ao spot ou post, como quiserem... Há algo que me irrita um pouco: a questão das prioridades-mal-elencadas*2: quantas pessoas não interrompem uma conversa, para seguir atentamente a sua novela ou o seu futebol? Mas isto é transversal a todas as gerações, sem querer colocar as pessoas todas no mesmo saco*3, obviamente. Deixar de estar com as pessoas de quem gostamos, para se prostrar frente à TV. Mas isso faz algum sentido? É claro que também existem formas salutares de ver TV e de partilhar em conjunto bons momentos frente à caixinha. Não é isso que está em causa.
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Faz-me uma certa impressão que certos casais cedam à superficialidade da TV e que lentamente a vão importando para o seio da sua própria relação. Sem se darem conta vão falando cada vez menos do que verdadeiramente interessa, vão partilhando cada vez menos as suas experiências diárias, os seus sentimentos, como se fosse um dado adquirido conhecerem-se inteiramente e já não haver nada mais para descobrirem um no outro. Uma pessoa, olhando de fora (pode ser da janela da sala, mas certifiquem-se com antecedência, por exemplo quando o casal não estiver em casa, que pelas frinchas do estores dá para ver alguma coisa), até pode pensar que o casal vê mais motivos de interesse na TV do que nele próprios. Espectáculo nada agradável de se assistir. E depois deixam-se estar ali na modorra a mandarem aqui e ali umas bocas, umas piadas, pá! e chamam nomes aos vilões das telenovelas e mandam o árbitro sempre para o mesmo sítio. E o que se segue a isto? Xixi cama e com sorte algo mais. O cansaço não explica tudo, não chega para explicar como é que se encalha nesta rotina. Digo eu.
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Agora*4 é que me estou a dar conta de que isto começou por ser um spot anti-TV e foi ganhando contornos*5 muito diferentes. Para além de ainda não ter dito nada de jeito, parece-me que estava prestes prestes a adoptar*6 a linguagem de um conselheiro matrimonial. A minha vasta experiência na matéria desaconselha-me terminantemente que prossiga por esse caminho. Ou talvez não, caso tão cedo não consiga arranjar trabalho... Humm.. Pensando melhor, talvez não venha a ser uma surpresa assim tão grande, se um dia se depararem na secção dos classificados com um anúncio do género: «Cláudio Jesus, opera verdadeiros milagres no reacender da chama matrimonial.» Isto com foto condizente: ar tisnado, profusão de colares e chocalhos e a imprescindível túnica branca (a preto e branco fica fixe e depois dá um ar digno e sacerdotal). De facto, salvar os laços do matrimónio é tarefa bem mais complexa e árdua (e para a classe dos conselheiros, felizmente mais onerosa) do que a cerimónia do casamento em si, daí que reivindicar o título de sacerdote-conselheiro matrimonial me pareça inteiramente justo. Por esse prisma, um conselheiro devia ser mais sacerdote do que um padre. Os que acham a ideia descabida, reparem só: um padre, ao contrário do conselheiro, tem a papinha toda a feita - os noivos estão de bem um como o outro (convém, não é), de mãos dadas e tudo (até certo ponto da cerimónia, é certo), estão lá porque querem mesmo dar o nó (não estamos numa telenovela, pois não?), é portanto improvável que estejam ali forçados (a menos que tenha havido algum percalço uns meses antes com a questão dos preservativos... e há deles duvidosos... pois se até em barbearias se vendem). Continuando. Não foi o padre que juntou os noivos com argumentos, nem com falinhas mansas, pois não? Já o conselheiro tem que penar e puxar pela verborreia*7 para tornar a unir o que parecia condenado à desunião. O padre lá por balbuciar umas palavras, levantar os braços, roçar a batina pelo chão, assistir a um beijo e pouco mais, é mais sacerdote e sabido nos mistérios do matrimónio? Como pode? Depois disto, quem é que merece o título de sacerdote matrimonial? Quem?
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*1)
Sete pessoas na pelucholândia já é público... Mas olha Luís, tem lá paciência, mas a ti não te deixo entrar... és manifestamente menor de idade e a pelucholândia não é para brincadeiras.
*2) Mais um palavrão que nasce da junção de várias palavras por travessões. O rapaz deve julgar que com isso consegue dar a aparência de uma nova entidade semântica e de um significado mais transcendente (que na verdade não tem)... O que fazer? O rapaz tem a mania...
*3) Se bem me lembro, quem punha tudo no mesmo saco era o sr. Bicho Papão e o Pai Natal.
*4) De como começou dei-me conta logo ao início, não foi só agora, visto que foi com essa intenção que o comecei... é daquelas verdades Lapalice.
*5) Não é o que possam pensar... os contornos rectilíneos da TV não se foram arredondando, nem curvando dengosamente... Nada desse teor! Este é um post que começou sério, que sim senhor ameaça descoser-se de cima abaixo (fiquem descansados que eu cubro os custos das costuras do nosso peluche), mas descambar é que não.
*6) Sim, eles falam de tal modo que a linguagem deles (tadinha!) só pode ser órfã... e, como até tenho um fundo bom, inconscientemente comecei a adoptá-la.
*7) Se se fizer um estudo suficientemente abrangente, tenho um feeling que se chegará à conclusão que um grande número de conselheiros matrimoniais começou por estagiar em call-centers.
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